sábado, 15 de outubro de 2011

Não sei do que... Só sei que sou.


Não que eu espere que você acredite, muito menos que se importe.
Essa história não pede corpo, nem presença, nem presente. O passado é o que a forma, e a minha presença já lhe é dispensável.
Começo lhe dizendo o indispensável (porém, a parte que sei que não vai acreditar). Tudo bem. Entenda como uma metáfora, se quiser.
Eu sou um anjo.
Isso. Um anjo. Nunca conheci a juventude, meus discos de crescimento não existem, e eu nunca conheci todos os pecados. Somente de vista. Não me lembro de como fui criado, nem quando (mas não se preocupe... Não me faltará memória para relatar os fatos)
Mas, por favor, não idealize os anjos. Os que se encontram na Terra estão aqui por algum motivo, e não devem ser idealizados. Na verdade, nenhum anjo deveria. Porque bem sei que eu não fui o único a pecar e cair aqui, e bem sei que não fui o único a amar o que não deveria ser amado.
Se estou falando do ser das profundezas? Não, eu não o amo, nem nunca me voltaria à ele. Na verdade, às vezes me pergunto se “ele” existe. Mas isso não é importante para o meu relato de fatos.
Nem o motivo a que caí importa, mas mesmo assim, vou lhe dar um resumo.
Fui encarregado de observar por alguns dias o modo como algumas famílias se portavam, como as pessoas daqui da Terra andavam, comiam, falavam, brincavam e brigavam. Fui proibido de toda e qualquer intervenção.
Chegando ao solo, tudo o que vi foi guerra. A mais pura e brutal das guerras. Pessoas correndo, pedindo socorro, armas, fogo, tudo o que eu não esperava ver. Nunca tinha vindo à Terra, mas a imaginava de modo bem diferente, afinal, ao longe não parecia ser tão vermelha assim.
Observei os mortos caindo aos meus pés. Cada vez mais um. Até que vi um bebê jogado à frente de uma porta (de uma casa que estava prestes a cair). Não me contive. Corri o mais rápido que pude, afaguei o bebê nos meus braços e o protegi. O protegi de tudo.
Como que numa simulação, tudo se dissolveu à minha volta, quando me dei por conta, eu estava em frente aos meus superiores, com o bebê nas mãos.
Eles me lembraram que eu não deveria ter interferido em nada. Especialmente na vida de um ser humano. Porém, depois de muita discussão, decidiram que eu deveria ir à Terra, e ficar com a criança até que crescesse e pudesse se proteger sozinha, como punição. Eu não veria minha casa por mais alguns anos.
Outra parte da punição é que eu não poderia me revelar para a criança. Nem como anjo, nem como tutor. Deveria cuidar dela em total anonimato.
E foi o que fiz. Observei Clarisse sempre de longe. Às vezes me aproximava, porém sempre de modo que ela não reparasse. Ela nunca viu que sempre que ia cair era eu que a afagava, sempre que chorava, eu é que aparecia e sorria para ela, para que parasse de chorar. Muito menos percebia que eu é que a amei.
Clarisse completou 16 anos. Mais ou menos a idade que eu aparentava ter, mesmo com mais de séculos de idade. Nesse dia, eu percebi que a amava. Não como um pai ama uma filha (afinal, eu não era seu pai), não como um tutor ama seu aluno (afinal, eu também não era seu tutor), e nem como um anjo ama seu protegido. Eu a amava como se deveria amar, eu tinha o amor ideal por ela, um amor real. Como se a presença e existência dela fossem meu motivo de estar ali (e eram).
Nesse momento é que me senti caindo. Literalmente. Meus laços com os céus foram cortados totalmente, e minhas asas já não me levariam para lá. Não recebi mais nenhum sinal, apenas sabia: Para lá, eu não retornaria mais.
Se me tornei humano? Não... Provavelmente não. Pelo menos, não me sinto humano até hoje.
Como sabia que já não havia mais jeito, resolvi me aproximar de Clarisse. Comecei a freqüentar a mesma escola que ela, e a conversar cada vez mais com a própria.
-Seu rosto me lembra alguém com quem eu sonhava há anos... Será que algum familiar seu conhece minha mãe? Ou já nos vimos antes?
-Creio eu que não. Acho que é impressão sua. Meu rosto é bem comum – Eu lhe disse, corando.
Divertíamos-nos muito, e eu sempre a amando, e cuidando bem. Assim como se deveria cuidar. Eu, como um anjo, sabia amar. Ah, como sabia.
Não é querendo me gabar, mas amar é uma coisa que eu realmente sabia fazer (já que foi por isso que me expulsaram, que seja essa minha maior qualidade), não sou como os seres humanos, que dizem que amam, e segundos após já nem se lembram mais da pessoa. Não sou como aqueles que se esquecem do próprio sentimento do amor, ou aqueles que jogam fora essa palavra, como outra qualquer.
Um sorriso dela me valia a vida e a morte. Já nem mais me lembrava do meu antigo lar, e não mais me importava.
Um dia, um garoto se aproximou. Não tive ciúmes. Muito pelo contrário, cheguei muito perto de amá-lo como a amava. Eu via como andava, como me olhava e como a olhava, como olhava a todos. Era apaixonante de se ver, era simplesmente lindo.
Por favor, não pensem que estou falando da forma física do ser. Isso não me importa (se te importa, ele não tinha tantos atributos físicos quanto a garota, mas sim, era bonito). O que me importava é que ele conseguia me prender a atenção, quase tanto quanto Clarisse.
Ter os dois por perto era minha maior alegria. Éramos três grandes amigos. Eu me sentia feliz de conseguir deixar os dois felizes. E às vezes sentia que a recíproca era verdadeira.
Claro que minha vida não chegava a se resumir nesses dois seres. O meu amor se resumia, mas a vida não. Eu interagia com muitas outras pessoas. Ri muito com muitos, brinquei, e experimentei como deveria ser um ser humano. Sinto que cheguei perto de me sentir como um.
Algumas vezes, tinha a impressão de que Clarisse não estava mais lá (se é que me entende. Se não me entende, não posso fazer nada). Ela me via, falava comigo, e ainda era a mesma. Mas era como se estivesse esquecendo quem eu sou.
Enrubesço com minha injustiça, hoje, afinal ela nunca soube quem eu sou. Não tenho como cobrar uma coisa dessas dela.
Mas algo nela começou a me incomodar. Não a ponto de eu não gostar dela, mas a ponto de odiá-la (não pense você que o ódio é oposto ao amor. Não, o ódio e o amor são sentimentos similares). Eu cheguei a odiá-la por dias, por ela não me reconhecer mais. Por ela não se deleitar dos meus atributos.
Logo percebi que o garoto também se sentia incomodado com a mesma coisa. Porém não da mesma forma, provavelmente. Estávamos os dois pensando no que acontecera com Clarisse.
Eu sempre tive muitos nervos e uma boa pitada de coragem, e ainda nos planos celestiais, prometi a mim mesmo que nunca iria guardar dúvidas e emoções. Logo, eu conversei com ela antes de Pedro (na verdade, hoje sei que ele nunca falou com ela sobre isso, só quando ela a procurou, mas essas palavras serão explicadas mais para frente).
Conversei na minha linguagem, que me parece simples, mas descobri não ser. Ela não entendia meus sinais (ou não queria entender). Parecia que eu estava falando numa linguagem oculta. Qual seria? Mal sei.
Minhas palavras parecem difíceis para aqueles que nunca viveram o que vivi. Para aqueles que, na verdade, não se importam.
Só soube da notícia quando já era tarde demais. Tudo ficou escuro demais, eu não soube dizer o que era. Não sabia se devia acreditar no que ouvi. Mas quando vi, descobri que talvez não devesse acreditar nos meus olhos também.
Apesar de ter ido atrás dela, descobri que Pedro também fora, ou ela fora, ou ambos foram. Já não me importa mais.
Ver os dois juntos daquele jeito me deixou em estado alarmante. Não sei lhe explicar o que senti. Não foi ódio, não foi amor, não foi nada. Foi como se eu só quisesse voltar para casa. Só queria voltar para casa.
Com o passar das horas, a dor amenizou. Foi tudo mais rápido do que esperei que fosse. Tudo mais natural do que jamais achei que seria. A dor passara. Eu passara, tudo passara.
Nunca tive medo de morrer, afinal nunca tive que me importar com isso. Mas isso, porque nunca achei que morreria.
Após a minha morte sonolenta, acordei e voltei a viver como antes. Tudo era como antes. Só que tudo estava diferente.
Não sou como os seres humanos, que dizem que amam, e segundos após já nem se lembram mais da pessoa. Não sou como aqueles que se esquecem do próprio sentimento do amor, ou aqueles que jogam fora essa palavra, como outra qualquer. Eu sou como aquele anjo que ama como ninguém jamais amou. Aquele anjo que cuidou, que sempre esteve ali. Aquele que foi atrás, lutou... Mas no final se cansou, ao ver que nunca seria compreendido.
Cansou por ver que tudo foi em vão. Cansou-se por descobrir que não era amor. Que foi tudo uma farsa que havia criado para si próprio.
Espero até hoje o meu convite de volta para casa.
Não que você tenha me pedido para ouvir essa história. Não que você queira que eu compartilhe com você meus sentimentos, sofrimentos e saudades. Mas a verdade é que já não me importo mais.
Sinto muito.
Umabel.

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